16 dezembro, 2007

O estrábico



Estava fazendo minha caminhada diária, habitual, quando em dado momento ao levantar um pouco a cabeça, deparei-me com uma dessas figuras que parecem ressuscitar de um sonho antigo.
A figura à qual me refiro tinha uma estatura mediana, já denotava uma certa curvatura em torno dos ombros, demonstrando que no passado fora mais alta. Sua vasta cabeleira branca denunciava estar na casa dos sessenta ou mais anos de idade. Seus olhos cabisbaixos deixavam ainda perceber o quanto já foram vívidos, belos e alegres. Sua íris de um azul bem clarinho chamou por demais minha atenção.
Ergui a cabeça com surpresa, admiração, carinho e talvez até com muito prazer e comecei a espreitar com certa sutileza os detalhes daquela figura que me fez, em poucos instantes, voltar ao passado.
Sua tez apesar de curtida pelo sol durante tantos anos não estava de todo ressecada. Mas o tempo é realmente implacável e transforma sempre para menor a juventude.
Ele não me reconheceu. Sim, a figura à qual me reporto é ele. Não me reconheceu porque durante a juventude nos conhecemos apenas de vista, não fomos íntimos.
Após sua passagem comecei a relembrar, saudosista que sou, como eu o conhecera e o que marcara no meu interior a sua lembrança.
Voltei minha mente ou meus pensamentos para o passado . Era o ano de mil novecentos e alguma coisa; não muita coisa.
Nessa época eu trabalhava em uma embarcação ainda movida a vapor através de uma caldeira que era alimentada ou abastecida por carvão (não me recordo se vegetal ou mineral).
Os tempos eram dificílimos e a tripulação, à exceção do comandante, e dos oficiais do convés e máquinas, residia na própria embarcação ou o local de trabalho também era a residência para a maioria.
Com tantos homens morando juntos, existia uma certa promiscuidade e os mais fracos física ou espiritualmente terminavam mesmo servindo de fêmeas para os mais fortes, mais velhos ou mais experientes.
Às vezes um jovem caloiro denominado de grumete, macho de nascença, tornava-se devido ao convívio, as circunstâncias, as armadilhas, o que hoje a sociedade designa de rapaz alegre, gay, bicha, bambi, esconde cobra, escorrega no quiabo, etc, mas que naquele tempo era denominado ou adjetivado viado.
Lembrei-me em detalhes que aquele sexagenário tinha sido um belo jovem. Um exemplar de jovem. Fosse hoje seria sem sombra de dúvidas um modelo, um stripes,, talvez até um galã de novelas se lhe fosse dado oportunidade.
Sua cabeleira, à época, era loira e brilhava ao receber a luz solar; seus olhos azuis claro, seu rosto rosado e imberbe, sua pele clara e macia e seu corpo, apesar de másculo, demonstrava algo sensual.
Seu nome? Não sei, sei apenas que ao pisar a primeira vez no convés daquela fatídica embarcação, alguém ao observá-lo batizou-o logo de maçã.
Passou a ser conhecido e chamado pela tripulação, carinhosamente, de Maçã.
Existia entre a tripulação uma figura polêmica que era o chefe da safadagem a bordo, o líder, o guru, o fanchone chefe. Era o Sr. Biu Creca (diziam ser seu nome de batismo) cujo apelido era reprodutor.
Era, desculpe-me , não é preconceito, um negão (nos dias atuais, afro descendente) de um metro e setenta, mais ou menos, cem quilos de massa corpórea, uma barriga enorme, os lábios pareciam duas bolachas d’água, o nariz achatado que num uma mão de pilão. Tinha quem dissesse que era lindo, por exemplo ,a mãe dele, eu francamente discordava em silêncio. Bom de briga, torcedor do Flamengo, mordedor de orelhas de seus adversários, um animal quando provocado e um diplomático, uma donzela, quando se fazia necessário.
Quando o maçã botou os pés no convés da embarcação a notícia se espalhou: ninguém bota a mão nesse menino, o Biu Creca disse que vai ser só dele.
De fato, ninguém se aproximava do maçã a não ser para ajudá-lo a lhe cercar de gentilezas cerimoniosas.
Com o passar dos dias Maçã foi promovido a ajudante do Sr. Biu Creca em um compartimento onde os dois permaneciam a maior parte do tempo útil
Todos já vaticinavam o grande dia; seria o estupro do ano; Biu Creca ia desmontar o Maçã a qualquer hora. Mas o tempo passava e nada acontecia..
Nesse interregno Biu já havia conseguido se tornar íntimo do Maçã e ganhara com muito respeito sua confiança.
Só que desde o início, quando viu pela primeira vez o Maçã, Biuzinho criou a seguinte estratégia. Notando que o Maçã era vesgo, toda vez que ele , o Maçã, se
Encontrava ou estava próximo a ele, ele ficava vesgo também. Todos achavam aquilo estranho e já se comentava a boca miúda que o Biu Creca havia ficado imaculado, abestalhado,pinel.
E maçã por sua vez, a cada dia que passava, ficava mais íntimo de seu algoz sem nada perceber, pois algo de macabro, horripilante, nojento estava para acontecer. Já trocavam até confidências dado ao grau de intimidade e confiança existente entre os dois.
Um certo dia, maçã ao adentrar ao local de trabalho, deparou-se com seu Biu, era assim que ele o chamava, às lágrimas em um canto da caldeira, pálido, trêmulo, gelado, estrábico, choramingando, dizendo coisas desconexas entre as quais falava em suicídio.
Maçã desesperado correra, voz trêmula, respiração ofegante, em socorro ao amigo indagando o que se sucedia, o que acontecera e Biu respondeu-lhe em soluços que era muito infeliz; tinha um bom salário, estava juntando dinheiro para comprar um carro, coisa de rico à época, tinha casa própria alugada no nordeste que lhe serviria de morada na aposentadoria, e mais uma ladainha comprida e convincente e no final sentenciou: tenho tudo isso, mas sou infeliz, vou ser infeliz por toda a vida. Apesar de ter tudo que uma pessoa possa desejar, ainda assim sou muito infeliz. Acho que você por ser tão bom para mim ainda não notou e se notou, por piedade nada comentou. Mas eu sou infeliz por ser assim. Assim como ? Indagou o inocente maçã. Assim, e olhou para maçã com aquela cara sem vergonha de tarado, fazendo-se de vesgo.
Mas isso não significa nada, disse maçã, eu não possuo todos os bens que o senhor possui e sou assim também. Isso não é motivo de desespero e tratou de consolar o amigo. A muito custo Biu Creca "se conformou" e fizeram um pacto naquele momento, de tentarem descobrir uma cura para os dois.
Passado algum tempo, não muito tempo, tudo voltou à normalidade. Biuzão antes abatido, agora depois do pacto estava mais conformado e o respeito entre os dois era algo de sacerdotal.
Certo dia Biu apareceu muito alegre e convidou maçã a um reservado e sentenciou: descobri uma maneira de ficarmos livres de sermos vesgos. O coração de maçã so faltava sair do peito de tanta apreensão e curiosidade. Queria saber logo dos detalhes mas o amigo disse-lhe não ser seguro tratar de assunto tão delicado na presença de terceiros, de curiosos. Era um assunto experimental, sigiloso, secretíssimo. Aí marcaram encontro na caldeira, local reservado, privativo dos ,dois, de difícil acesso, depois que todos fossem dormir, após o toque de silêncio.
Maçã passou o resto do dia muito agitado, apreensivo, não via a hora de se libertar daquela "instalação trocada" que trazia do berço, herança sabe-se lá de quem !
Finalmente anoiteceu e todos dormiam o sono dos justo, quando os dois se encontraram.
Biu estava radiante; maçã não escondia tanta emoção e curiosidade.
Biu Creca vulgo reprodutor e também conhecido ,não se sabe ou não se quer dizer, como tripé, confidenciou ao amigo que havia consultado uma cigana e essa ao lhe botar as cartas do tarô revelara que para ele (Biu Creca) ficar bom daquele mal de que era acometido, o estrabismo, só uma coisa deveria ser feita. Ele teria de procurar outro vesgo e os dois acasalariam duas vezes; sendo que cada vez um seria o macho ou a fêmea e depois se revezariam. Maçã parece que não entendeu e pediu ao seu amigo e protetor que falasse uma linguagem mais venal, mais vulgar, mais simples que ele não havia entendido direito. Na verdade maçã estava começando a ficar desconfiado com toda aquela falação..
Então Biu foi bem claro, bem objetivo: a cigana mandou que eu e você trocássemos, pois sendo os dois vesgos, assim que um possuir o outro sexualmente, um deles ficará bom imediatamente.
Maçã olhou disfarçado para entre as pernas de Biu e através do calção viu uma protuberância que não gostou e começou a se encher de pavor. Aí disse: o senhor ta é doido, nessa eu não entro . Mas Biu não se deu por vencido e disse para o amigo que queria correr tal risco pois se não der certo a gente desiste e tendo você me possuído guardamos segredo e ninguém mais precisa ficar sabendo. Se ao me possuir não acontecer nada, eu não ficar bom , eu não preciso lhe possuir: só se eu ficara bom. Diante de tal argumentação, achando justa a proposta, maçã aceitou o desafio.
Biu ficou nu, de quatro, virou aquela bunda preta cheia de creca para maçã que ainda era virgem e este começou a tentar possuí-lo . Quando biu sentiu a proximidade da bimba de maçã na sua retaguarda gritou: MILAGRE ! , MILAGRE ! fiquei bom !
Quando maçã olhou para o amigo e notou que o mesmo não era mais vesgo (na verdade o safado nunca o fora) ficou louco para provar da cura.
Tirou a roupa, virou-se para o negão com aquelas lindas nádegas arredondadas bem parecidas com as de uma fêmea e fechou os olhos.
Depois daquele dia maçã nunca mais foi o mesmo, além de estrábico ficou gago e com um andar muito esquisito, puxando de uma perna. Biu Creca, seu conselheiro, seu professor, passou a ser odiado por ele e nunca mais se falaram; quando se encontravam sempre havia um arranca rabo. O responsável pela embarcação temendo o pior, encaminhou maçã para outra embarcação e nunca mais soubemos notícias dele. Somente agora foi que o vi de passagem, muito rápido.
Distraído com essas lembranças não percebi que um jovem se aproximava e me perguntou: moço, sabe onde tem por aqui uma clínica de olhos ? Eu não sabia mas lembrando-me de que acabara de ver o maçã sem o seu estrabismo tive a idéia de mandar o jovem indagá-lo a respeito, mas procurei em minha volta e maçã já havia partido.
Aí , por mera curiosidade perguntei ao jovem que me assediara, porque ele procurava uma clínica de olhos e ele me respondeu: procuro a cura para o estrabismo.
Então, para não alongar mais essa estorinha, pergunto a você amigo: és estrábico ?

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