Acho interessante como volta e meia afloram do meu subconsciente lembranças de minha infância e da minha juventude. Acredito que sou forte candidato ao mal de Alzimer, pois me lembro de coisas remotas, mas não sou capaz de decorar o número do meu próprio celular. Mas alguém já falou ou li em alguma revista ou jornal que a gente só lembra ou grava na memória aquilo que realmente nos interessa, assim sendo, prefiro essa explicação à outra, a do Alzimer.
Vou soltar minha imaginação para relembrar fatos de quando ainda era criança. Lembro que ainda pequeno, talvez lá pelos cinco anos de idade, fui morar em uma casa com meus pais, é claro, que se situava num bairro pouco nobre da nossa cidade. Na época do calor, devido ao grande areal, você tinha que sorrir com a boca fechada senão o vento enchia a sua boca de areia. No inverno, aí sim melhorava, a lama escura batia no meio da canela. No mesmo quarteirão da rua havia uma igreja de crentes e tinha noites que não deixava ninguém dormir. Quando criança freqüentei muitas vezes essa igreja. Até hoje ainda lembro-me de um trecho de uma das canções que eram diuturnamente cantadas pelos fies: "Agradeço a meu salvador, de todo o meu coração, antes eu era um perdido, vagava sem ter direção, mais hoje vivo contente porque sou um crente e achei salvação... Dobrando na primeira esquina, na outra rua havia um centro espírita onde por várias vezes vi uma mulher, a dona do centro, mudar a voz, o jeito de andar e falar. Estava manifestada com o caboclo Zé piuba. Certa vez não estando manifestada recebeu a visita de um cobrador. Quando esse falou: Ó de casa ! Eu estava próximo a ela e até me assustei quando Caboclo Piúba imediatamente incorporou e uma voz autoritária, cavernosa, determinou que o cobrador voltasse outra hora que o "cavalo" no momento não poderia atender. O cavalo no caso seria a médium que incorpora um espírito. Escutei bem baixinho quando uma crioulinha (hoje denominada afro brasileirinha) dizia maldosamente: é só aparecer cobrador que piuba logo se manifesta. No outro extremo da rua ficava um terreiro de macumba cujo pai de santo mera avô de meu melhor amigo Mane Pezão. Nesse local eu tinha medo de ir mas às vezes freqüentava, principalmente nos dias em que eu e Mane resolvíamos pedir emprestado, sem ressarcimento, algumas moedas que os fies depositavam aos pés das estátuas que representavam cada uma um orixá. Lá também tinha muitos cânticos e um dos que gravei foi aquele que o pai de santo, no meio de uma roda no terreiro, roda de seguidores,todos vestidos de baianas. Gritava, acho quem em africanês, pois até hoje não entendi o que eles diziam mas creio que era mais ou menos assim: o pai de santo gritava – quem quiser dá o lodo ode. Em um ritmo musical apropriado os fies respondiam: quem dá o lodo é você !
Passando umas poucas quadras tinha uma igreja católica onde eu era obrigado a freqüentar, porém, não a adentrava e ficava com outros moleques na pracinha em frente a igreja, brincando inocentemente de atirar pedras nas pessoas e se esconder atrás dos arbustos.
Lembro-me que certa vez meus pais queriam me exorcizar porque eu havia usado a cabeça de uma boneca, duas quengas de côco, um estrado, um travesseiro velho e construí uma fêmea toda desengonçada. Quando eles saíam de casa eu ia fazer um lóve com a minha engenhoca. Deitava-me por cima do estrado que se encontrava em cima dos tijolos, a boneca em cima do estrado, e beijando a cabeça da boneca passava o braço direito por baixo e segurando as coisas eu me masturbava pensando na mulherada da vizinhança. Certo dia fui flagrado nu em cima daquele aparato, dizendo obscenidades, e não percebi a chegada de uma tia minha que além do susto e vergonha que me fez ainda me caboetou.
Meus pais me levavam às vezes a um centro espírita de mesa branca que também ficava próximo de nossa casa. Não me lembro quantos anos tinha, só lembro que o auditório tinha cadeiras como se fosse um cinema. Eu ficava na última fila, sozinho e boquiaberto com o que via ali e volta e meia fazia xixi e por ser o piso inclinado o xixi ia bater na mesa onde estavam reunidos os mestres. Como as lâmpadas ficavam quase todas apagadas, a falta de iluminação me acobertava.
Na igreja católica lembro que vestido de anjo participei de uma liturgia chamada de lava pés Antes da lavagem dos pés havíamos recebido um pão bento para guardarmos de recordação da efeméride. Quando cheguei em casa e minha mãe pediu o pão , só havia uma pequena casca pois o miolo eu havia comido todo.
Talvez tenha sido nessa época que minha convicção religiosa, devido a tantas informações sobre o céu, inferno, purgatório, almas penadas, assombrações, lobisomem e tantos outros do gênero que me tornei agnóstico em determinados momentos, evangélico, católico, espírita, condombleiro, em outros.
Sou temeroso a tudo que não conheço e não entendo. Lembro-me que certa vez, como escoteiro, estávamos acampados no meio da mata e um dos lobinhos responsável pela segurança do grupo, lá pela meia noite adentrou nosso alojamento e balbuciando umas palavras que não entendíamos, tremia mais que vara verde. Um pouco mais calmo mele nos contou que uma pessoa vestida de padre, com batina, se aproximou do posto de observação onde ele estava e não tinha cabeça, era um padre sem cabeça, olhando para ele. Todos ficamos assustados, até que um lobinho esperto fez o seguinte comentário: se era um padre sem cabeça, como poderia estar olhando para ele ? .
Tem pessoas que se dizem médiuns, outras prevêem o futuro, uns falam com os espíritos dos que se foram, têm os charlatães, por sinal a grande maioria.
Clotilde era uma moça velha, encroada, nunca se casara e apesar de estar em uma idade um pouco avançada, ainda se queixava de que era virgem zero km, mais tinha um pormenor, é que Clô recebia durante a noite espíritos dos que já se foram e até com eles coabitava, dizem as línguas ferinas que tudo sabem. Clotildinha quando jovem, ela se vão muitos carnavais, dizem os contemporâneos que não era de se dispensar. Do dia para a noite Clotilde começou a murchar, a envelhecer mais rápido que a natureza determina e tendo um dia desmaiado na rua foi levada a um hospital. O médico a examinou de cabo a rabo e no final sentenciou: a senhora está sendo chupada por um barbeiro. Clô deu um pulo da cadeira e indignada, revoltada, sentenciou: mais que bicho ordinário esse Ademí, querendo me iludir dizendo que é bombeiro. Aí o médico surpreso procurou desfazer o mal entendido explicando a Clozinha que a chupada que ele se referia era do mosquito que através de um chupão transmite a doença de chagas que causa desconforto e até óbitos ao ser humano. Considero esse um clássico uso do charlatanismo praticado por Ademí que até hoje não sabemos se era vivente ou do outro mundo.
Assisti também a muitas curas milagrosas na igreja evangélica que relatei ser próxima à minha residência. Certa vez, entre cantos e louvores, aos gritos de aleluia, assisti um verdadeiro "milagre". Sempre que ia a tal igreja o pastor berrava e mandava que todo mal se afastasse das pessoas, o inimigo era quem nos fazia tudo de mal. Ele ordenava que se alguém estivesse com algum problema se apresentasse e ele em nome do criador determinaria que aquela pessoa ficasse boa. Dessa vez uma pessoa entrou em uma cadeira de rodas e o pastor ordenou: ande, venha até mim e o sentante levantou e dirigindo-se ao púlpito onde o pastor pregava, de tanto feliz que estava começou a quebrar a cadeira de rodas aos gritos de aleluia, aleluia. Só não entendi bem como Mane bafo de bode foi parar naquela cadeira de rodas se na mesma tarde daquele dia ele estava junto da molecada jogando bola lá nos fundos do clube galinheiro. É mais milagres acontecem.
Já na igreja católica a coisa era mais rigorosa, mais austera, mais séria. Padre Pinto era a santidade em pessoa. Bondoso não ostentava nenhum sinal de riqueza. Morava humildemente na casinha paroquial onde ficava rezando com as beatas mais velhas até altas horas de canto, acompanhadas de muito vinho sagrado e quitutes espirituais. Dizem as más línguas que a partir de umas tantas horas as orações eram como vieram ao mundo para lavagem da alma. Padre Pinto ao confessar os ninhos colocava-os sempre em seu colo. Certa vez sentado no colo do padre santo senti uma protuberância entre as minhas nádegas e as pernas do padre, como nunca fui devoto fervoroso, disfarcei e dei por encerrada a liturgia. Ainda hoje tem jovem daquele tempo que se recorda com saudades do referido padre a quem chamam carinhosamente de nosso papi. Padrinho Pinto já não está entre nós, deve estar no céu. Morreu de uma doença chamada priapismo. As beatas que não freqüentavam os saraus do padre dizem que a doença dele foi castigo. Não entendo por quê?
Depois desse pequeno prólogo fico imaginando se meu habitat infantil influenciou a minha crença e hoje em dia desconfio até de dinheiro novo. É tanta igreja dita protestante, são templos homéricos, suntuosos, milagres, mas noto que uma coisa não mudou. A suntuosidade das igrejas, templos, dos centros espíritas e se no início Jesus andava em cima de um jumento, hoje os padres andam montados nos seus jaguares, em seus quatro por quatro e por aí em diante. Pastores dos mais contritos e fervorosos, chefes de suas igrejas, são abordados pela polícia e presos, ao descerem de seus jatinhos portando malas cheias de dólares e euros. Abominam o real. O batismo antes oficiado no rio Jordão hoje é feito em piscinas luxuosas com água mineral gaseificada. E a clientela, o público, os adoradores, os aficionados, os fiéis cada vez mais contritos, mais pobres e mais iludidos.
No meio de orixás, clérigos, espíritos, pastores, charlatães, assim foi minha educação religiosa.
Tive também preciosas aulas de catecismo, nas quais aprendi muito de solidariedade, compaixão, amor ao próximo e tantas outras coisas boas. Lembro-me de uma aula de catecismo que tive o jardim de infância sobre o quanto se deve ser leal e ter preocupação com o que possa acontecer ao seu semelhante. Contou-nos beato Toinho, nosso orientador espiritual, que antigamente os animais falavam como nós. É verdade que sempre se comunicaram e comunicam uns com os outros desde o inicio do mundo, mais o que beato Toinho quis dizer é que falavam como nós.
Certo dia viajavam vários animais em um navio cargueiro, quando de súbito o navio foi atingido por uma onde gigantesca e soçobrou. Não se soube mais do destino ou infortúnio de cada um a exceção de dois deles que foram parar numa ilha deserta. Quando os dois se encontraram fizeram um pacto de não agressão e amizade a bem de suas sobrevivências. Eram dois animais belos, um jumento e um leão. Passaram anos juntos vagando em busca de alimento e não tinham mais esperanças de serem salvos, pois tal ilha ficava distante, talvez próximo de onde o vento faz a curva.
A intimidade entre os dois foi crescendo e pareciam irmãos e o afeto, a admiração mais crescentes ainda. De afeição fraterna a coisa foi evoluindo, para uma admiração mais profunda, mais intima; já começavam a trocar segredos, intimidades, fantasias e outras mais. Certo dia o jumento acordou e contou um sonho que tivera com o leão. No sonho do jumento o leão não era o leão, era uma leoa e os dois se casavam e iam passar a lua de mel na guarita de São Pedro, mas para desgosto do jumento, na hora "h", hora do lóve, ele acordara. O leão não gostou muito desse sonho e passou a dormir atrás da moita, longe do jumento e passou a usar cueca de couro. Um belo dia o jumento se aproximou do leão com umas brincadeiras que mais pareciam assédio sexual. O leão não gostou, deu um rugido forte, disse que era macho ôme com O maiúsculo e coisas do gênero.
O jú, tratamento carinhoso de jumento, não se intimidou e na primeira oportunidade chamou o leão num canto e declarou toda a sua necessidade. Disse-lhe que há quatro anos não machucava uma perseguida e que os dois poderiam viver mais intimidades e quem sabe ter alguns filhotes juntos. O leão na mesma hora quis entornar o caldo dando umas bifas no assediador. Mas como água mole tanto bate até que fura de tanto o jumento buzinar abrobrinhas ao ouvido do leão, que no início esclarecera que tinha duas orelhas e não dois pinicos, esse foi enfraquecendo suas defesas psicológicas e se no início dizia pare com essas idéias, você não vê que sou o rei dos animais e que meu rugido, por si só, afugenta o inimigo, já começava a achar graça das investidas do jumento e achar que o amiguinho a princípio só queria brincar e agora esta querendo era a sua felicidade. Certo dia, depois de longa espera e investidas o jumento falou para o leão que não dava mais para esperar, tinham que coabitar sexologicamente, pois ambos estavam no sacrifício há muitos anos e já estavam de patas inchadas de apelar para a covardia. Propôs então que fizessem uma permuta sexual. Em lealdade ao companheiro o leão poderia usá-lo primeiro e depois seria sua vez, a vez do jumento. Houve muita negociação, muita relutância por parte do leão, até que finalmente o leão cedeu e como seria o primeiro achou que estava bem. Ninguém ficaria sabendo daquela ilação pois só existiam eles dois naquela ilha. Foram para trás de uma moita e o leão começou a passar um creme em seu sexo. Sentindo aquele cheiro o jumento perguntou ao leão o que era e ele respondeu que era um cremezinho para não machucara o amigo, o jumento, já que se tratava de sua primeira vez, e como sabemos a primeira vez a gente não esquece. De fato, atrás da moita o jumento foi possuído pelo leão e chegou à vez da inversão. Descansaram, se limparam, se perfumaram com folhas de colônia e foram mais uma vez ao motel improvisado atrás da moita. Ao chegarem lá o jumento começou a passar um creme muito cheiroso no instrumento sexual que era uma enormidade e despertou a curiosidade do leão que lhe perguntou que creme era esse e o jumento lhe respondeu: vick vapurub. E o leão curioso. Vick Vaporub? Pra que? A resposta do jumento: pra não inflamar sua garganta. E nesse ponto beato toinho nos dizia que esse foi um dos maiores exemplo de solidariedade, compaixão e preocupação que o jumento teve em relação a seu quase semelhante o leão em não magoá-lo, demonstrando assim todo o seu amor fraternal.
Existia também próximo de minha casa, um descampado, ocupado por uma tribo cigana que viviam seus componentes, de modo desregrado, soltos, pouco afeitos às normas ditas sociais; mentiam, roubavam, blasfemavam e dizem que roubavam crianças para juntar ao seu bando ensinando-as as maiores atrocidades. Eram ateístas, cultuavam a dança e o amor livre. Com muito medo nos os molecotes da época, sem o conhecimento de nossos responsáveis, furtivamente, principalmente quando começava a escurecer, assistíamos àquela súcia e nos deliciávamos olhando toda aquela libidinagem. Presencia-vamos também, às escondidas, alguns rituais de magia negra com matança de pequenos animais, entre eles o coelho, as galinhas, os patos, os urubus, a quem seus algozes após cortarem-lhes a garganta, bebiam seus sangues.
E foi nesse ambiente de plenitude religiosa que vivi, cresci e aprendi os primeiros ensinamentos religiosos e disciplinadores.
Vocês já devem estar perguntando o que é que tem a ver essas considerações toda comigo, com a minha religiosidade, com a minha crença
E respondo: tudo amigo, pois se não tivesse tido o privilégio que tive de ver e passar por tantas experiências ditas religiosas, talvez hoje fosse um católico cheio de dúvidas, um evangélico fanático, alucinado com fatos que só os evangélicos vêem e sentem, um espírita cheio de dúvidas e medo do sobrenatural, um cigano bêbado e sujo, blasfêmero, e como todos procurando o milagre em todos os recantos do mundo sem perceber que a realidade está bem próximo a nós e que se prestarmos um pouquinho mais atenção descobriríamos que Ele está sempre próximo a nós. E por tudo isto esclareço ao atento amigo que no momento, acima de tudo, hoje posso declarar publicamente: sou agnóstico.
E você amigo, é simpatizante a que?
Nota do autor:
Trata-se de um relato de minha pura imaginação, qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência. Não existe a intenção de denegrir qualquer pessoa ou instituição.