16 dezembro, 2007

Saudosismo



"Eu era feliz e não sabia" já dizia o poeta, cantor e compositor Ataulfo Alves.
Toda vez que ouço ou leio esta frase e outras dessa música, desse cancioneiro popular, me vem algumas recordações, principalmente da infância, correndo para cima e para baixo com os pés descalços nos areais de nossa rua que àquela época nem se sonhava em calçamento. Não existia ainda os tradicionais chinelos de dedos que existem hoje, havaianas, do pé, etc, por isso deixávamos os nossos tamancos em algum lugar para livre os pés correrem o quanto podiam.
Contava-se à época que o tamanco havia sido uma invenção dos portugueses e que por muitos anos não tinha um nome adequado, mas certo dia um português um pouco distraído confeccionou um par de tamancos com o salto na frente. E dirigindo-se ao local onde o evento seria a escolha de um nome para a peça ora mencionada, ao adentrar ao recinto todos notaram que o andar dele estava desengonçado devido ao calçado que ele suava. Aí alguém gritou pra ele: Joaquim tu ta manco ? E logo, logo, batizaram o calçadão de Tamanco.
"Tantas travessuras eu fazia, jogo de botão lá na calçada, eu era feliz e não sabia".
De fato.! Não eram esses jogos de hoje feitos com material plástico ou outros materiais sintéticos. Eram feitos normalmente com quenga de côco moldadas normalmente no cimento das calçadas, tampas de refrigerantes e o que nossa infantil imaginação viesse a despertar. O tabuleiro ou campinho, para contrariedade e queixas de muitos vizinhos eram desenhados nas calçadas com pedaços de carvão vegetal.
Não tínhamos bicicletas mas as alugávamos com os poucos réis que nossas mães nos davam. Se pedíssemos aos pais não era raro o caso de recebermos uns bons cascudos.
Quantas saudades daquelas surras que levei. Era filosofia da época que era melhor apanhar dos pais que mais tarde da polícia. Hoje graças a Deus que os pais não batem mais, só quem bate e a polícia. Fez bobagem, uma brincadeirinha inocente como aquela de botar fogo em mendigos ou perseguir bichas e prostitutas para bater, hospedou-se por esse motivo em uma delegacia, o delega chama logo seu agente de confiança de lado e diz: da uns "conselhos" a esse menino !. Ainda acho que se o conselho tivesse sido dado em casa o sujeito não estaria sendo aconselhado por terceiros numa delegacia e corre o risco de ser mal aconselhado.
Na realidade , naquela época, sem entender o mundo fora do recesso de meu lar, era um revoltado por apanhar dia sim, dia sim também. E em silêncio odiava meus pais e isso ficou na minha mente, no meu coração por muitos e muitos anos. Mas à medida que avançava no tempo e em idade é que comecei a entender e a agradecer por aquelas chibatadas. Não fossem elas talvez eu não tivesse a chance de sobreviver até hoje com dignidade, amor ao próximo e a meus país.
Hoje tenho filhos adultos que criei junto com minha esposa sem aquelas surras homéricas que recebi; foram só uns gritos aqui, uma porradinha ali, um chamado de burro, tudo para manter o ajuste social necessário. Hoje quando têm qualquer problema correm para o divãs dos psiquiatras, dos psicoterapeutas e feito uns otários contam seus mais íntimos segredos a um estranho e dependendo de seus estados de espírito e de seus porta cédulas, a culpa pode ser do pai que lhe bateu na infância, do pai que não bateu, da mãe que botou chifre no pai , da mãe que não botou mas tem vontade de botar, e mais uma infinidade de parâmetros que só Freud explica. Se o Mane está depressivo demais o conselho é comprar um animalzinho de estimação para lhe fazer companhia: uma cobra, um pitbul, um Jumento (é bom em apartamento), um bode pai de chiqueiro uma macaca, etc Graças a Deus nunca precisei desse tipo de tratamento, também no meu tempo não existiam essas facilidades. Quando tinha ou quando tenho um problema, à noite, no escuro de meu biongo procuro de me ocupar e não me preocupar de como posso resolver tal pepino e com a ajuda de Deus sempre encontro uma solução.
Ninguém é bom ou mau por culpa dos pais. O espinho quando é bom de pequeno já traz a ponta. No ser humano é a índole. Se nasce com uma má índole, não tem jeito, pau que nasce torto morre torto.
Antigamente os pais ainda tinham a oportunidade de corrigir certas aparas, hoje não a Lei não permite. Dura lex sed lex.
Lembro-me de algumas travessuras que fazíamos juntos. Eu era o mais medroso da turma mas o ser humano se modifica quando em grupo e eu não era exceção. Bancava o durão mas por dentro estava me borrando todo quando saíamos para uma empreitada. Próximo às nossas casas havia um quartel da polícia militar e diariamente em um determinado horário passava um grupo de soldados tocando uns instrumentos e entoando marchas militares. Eu, não tínhamos líder, e os outros meninos, acompanhávamos todos os dias os militares e com os tamancos nas mãos, íamos atrás deles batendo no mesmo ritmo dos tambores e quando as cornetas tocavam nós cantávamos a letra da música ao nosso modo, a que mais gostávamos era essa: "eu fui pra mata cortar café, errei o corte e cortei o pé parim pampam.. eu fui pra mata cortar cebola, errei o corte e cortei o dedo..param pampam. Aquilo era muito engraçado. Riamos a valer. Mas quase sempre alguém gritava "alto" . E de lá, da banda militar, saía sempre um soldado correndo atarás de nós, que éramos só pernas pra que te quero, a mais pura adrenalina, o coração querendo sair pela boca de tanto correr e depois de se safar vinham os risos. Nossos pais nunca souberam disso. As outras crianças tinham mais liberdade que eu. Normalmente na parte da manhã eu freqüentava o grupo escolar
Frango Assado, à tarde das segundas, quartas e sextas eu era aprendiz de ourives, terças e quintas aprendiz de mecânico e à noite aprendia crochê com minha mãe aos sábados e domingos ia cobrar prestações com meu pai que era um prestanista mas sempre sobrava um tempinho para aprontar alguma coisa boa. Era um anjo. Apesar de tantos esforços de meus progenitores, na ourivesaria não aprendi a distinguir um anel de cobre de um de ouro, em mecânica, não sei usar nem uma chave de fenda e em crochê para não dizer que não aprendi nada, pelo menos teoricamente quanto prenderam o Mike Tyson por tentar estuprar uma candidata a miss que foi ao seu apartamento as três horas da manhã para aprender com o negão a fazer crochê e quando o jovem lhe mostrou a agulha ela fez aquele estardalhaço, me lembrei ainda da minha agulhinha bem fininha, dizem que a agulha do negão era grande e grosso, daí a confusão.
"Onde andará Mariazinha, meu primeiro amor onde andará"
Sempre fui fiel aos meus poucos amores. Ó quanta saudade de Maria Quitéria minha primeira e grande paixão; foi um romance maravilhoso , durou seis meses, mas foi igual ao do poeta que diz foi boi enquanto duro, mas até hoje não esqueci ,aquela crioula. Foram seis meses de insônia e quando conseguia dormir sonhava até com seu joanete, era amor puro,casto, sem malícia, amor infantil, mesmo porque naqueles tempos o homem ficava donzelo até por volta dos trinta anos. Muitos só deixavam de ser puros quando casavam. Não se tinha essa liberdade de expressão como se tem hoje que sem mais nem menos as pessoas vão logo dizendo: relaxe e goze, nem ministros ousariam falar isso.
Pois bem, após seis meses de devoção e sofrimento veio o pior balde de água fria. Quiterinha descobriu, através de um colega linguarudo, que eu estava namorando com ela e acabou o namoro na mesma hora e ainda queria me dar umas bifas. Hoje pensando na minha Quite é que me avisaram que foi um amor platônico. Eu para não ficar por baixo retruco: se foi platônico não sei, mas que amei, amei. Depois de Maria Quitéria, ainda donzelo, aos quase quarenta anos, conheci minha adorável esposa no rala ovo do Toinho e ela me namorou e desde a primeira noite que fizemos lôve ela ainda conserva o hábito carinhoso de colocar o travesseiro na minha cara, mas antes manda que eu escove os dentes com um líquido cheiroso -não sei onde ela compra – à base de formol..
"Que saudade da professorinha que me ensinou o bê-a-bá "
Dona Cacilda, que mulher maravilhosa. Alta, magérrima, olhos de piatomba, dentes estragados e quando falava parecia que alguém tinha dado descarga na latrina; aquele sovaco matando a pau e aquela doçura de palmatória pendurada no pescoço. O melhor dia para ela era o dia da sabatina.Reunia os alunos em círculo, ela no meio parecendo uma rainha de terreiro de macumba e aí começava: dois e um e nós respondíamos uníssonos três. Três e um e aí por diante; de repente seis vezes três e todos menos um, dezoito e o um quinze. Pronto a festa estava feita em cima do um. Depois daquilo nunca mais o um esqueceria aquela multiplicação. Ah ! Quantas saudades daquela maravilhosa criatura. Não fossem as palmatoradas, reguadas, beliscões, puxões de orelhas eu ainda hoje era igual à mãe de uma autoridade que já nasceu analfabeta.

Nenhum comentário: