23 fevereiro, 2008

O analfabeto


Juvenal , assim como tantas outras crianças pobres, sonhava um dia encontrar uma botija enterrada no quintal de sua miserável casa. Sonhava muitas vezes que poderia ser um político honesto que cumpriria todas as promessas de campanha, não compraria votos dos eleitores, não apontaria os podres dos companheiros e não legislaria em causa ou benefícios próprios. Em seus devaneios pensava também em ser um profissional da medicina, caridoso, sensível aos apelos de seus pacientes, pronto a ajudar os menos favorecidos economicamente. Eram esses pensamentos influência de estórias que ouvia dos mais velhos, pois na realidade não tinha uma noção exata do que poderia ser um político honesto ou um médico caridoso. Mesmo sendo uma criança era muito trabalhador e tinha um grande defeito que era o de se irritar com facilidade quando executava uma tarefa qualquer e um dos irmãos ou amiguinhos vangloriava-se de ter feito o trabalho querendo puxar a brasa para a sua sardinha, os famigerados pucha-sacos, aí nessa hora, diante de tanta malandragem, devido à sua timidez ou falta de coragem moral dizia baixinho: filho de uma ronca e fuça, ta gozando com o pau dos outros.
Vivia essa criatura, a sua miserável infância, numa cidadezinha do nordeste, uma das menos adiantada, pior que Caetés, naquela época. Tinha uma alma generosa e apesar de nada poder contribuir aos menos necessitados, compensava a falta de recursos com prestação de pequenos serviços, recados, acompanhamento pessoal a enfermos e idosos, e escutava com paciência os quantos lhe procuravam ou procuravam os seus préstimos, o seu apoio físico ou moral apesar de sua pouca idade.Diziam ser ele um iluminado.
Logo cedo perdeu os pais vitimados por uma epidemia que, embora fique difícil de acreditar, assolou quase todo o nordeste do país. Esse rincão abençoado a quem os políticos gostam tanto de ajudar, principalmente quando se aproxima as eleições.
Juvenal, ainda muito criança, tendo perdido seus principais entes queridos, após muitas lágrimas, muito pranto, muito choro – naquela época os filhos choravam a perda de seus pais ao contrário de hoje que a vida toda, uma grande maioria, além de desrespeitar e contrariá-los, ainda tem os que matam ou mandam matar seus progenitores para ficarem com alguma herança, às vezes tão insignificantes como uma panela de pressão. Juvenal, não, chorou e derramou lágrimas sinceras no túmulo improvisado debaixo do cajueiro no quintal da casa de seus falecidos entes.
Irmãos, tios, avós não os tinha, não puderam assumir a paternidade, a proteção a Juvenal.
Sujo, roupas em farrapos, mal cheiroso, pés inchados e rachados, pele ressecada pela ação causticante do sol, chegou Juvenal, após muitos dias, à capital de seu Estado natal.
Tenho certeza que o amigo (a) leitor (a) deve estar curioso diante deste pequeno prólogo que pode bem definir a história de muitas crianças nordestinas do passado, do presente e queira Deus não aconteça no futuro.
Vocês não têm nada com isso, não são nordestinos, não têm ninguém dessa raça na família mais a curiosidade, aquela que matou o gato, impele-o a continuar. Diz: não estou fazendo nada mesmo, vou ver até onde vai essa baboseira toda!
Pois bem, sem me estender muito, pois não é de meu feitio, vou direto ao ponto.
Há alguns anos atrás residi em uma cidade do nordeste bastante desenvolvida. Tive um bom relacionamento no trabalho, com a vizinhança e mais amigos comuns. O nordestino de modo geral é muito hospitaleiro. Uns anfitriões.
Abastecia meu automóvel que os amigos puseram o nome de possante, o meu fusca ano de fabricação muito anterior ao meu nascimento, em uma rede de postos de gasolina, quase sem concorrentes na referida cidade. Seu proprietário era um homem não muito gordo apesar da proeminente barriguinha de chop, diria que atarrancado, cabelos brancos lhes denunciando os anos corridos; afável, educado, bem humorado, de uma simplicidade incomum para um homem que como ele dispunha de tantos bens materiais.
Conversa vai, conversa vem, uma dosezinha de cachaça aqui, outra ali, um pacu assado (vindo do Pará), uma ova de curimatã frita, uma piramutaba na brasa e daqui a pouco todo mundo era rico, filósofo, escritor, e todos comendo sardinhas e arrotando caviar, ali estávamos eu e meus companheiros de "copo sujo" aquartelados num botequim próximo às nossas casas; acho desnecessário dizer que o boteco era coisa fina, familiar. E nessa conversa vai, conversa vem, passa à nossa frente justamente o seu Juvenal conduzindo em um carrinho de mão sacos de cimento.
Ninguém da nossa turma gosta de falar ou vigiar a vida alheia, mas nesse dia, não sei o porquê, alguém comentou: se fosse rico que nem ele, não mais trabalharia; outro – deve ter roubado um bocado para ter essa fortuna. Mas, finalmente surgiu uma voz mais sensata, o Teobaldo que disse: não é nada do que vocês estão pensando. E vou esclarecer aos línguas de trapos a origem da fortuna de seu Juvenal.
E foi o que ipsis verbis Teobaldo iniciou sua narrativa: certo dia eu estava em um dos armazéns pertencente ao seu Juvenal quando o escutei conversando com o motorista de uma carreta e esclarecia que quando criança antes do falecimento de seus pais era um sonhador mais que a vida lhe ensinara a perseguir seu destino ao invés de sonhar. Nisso o carreteiro disse ao seu Juvenal que já havia descarregado a carreta e todo material estava em ordem e só faltava ele assinar a fatura acusando o recebimento. Seu Juvenal mandou que ele levasse a fatura ao seu gerente que ele a assinaria. Não encontrando o gerente, pois faltara ao serviço naquele dia, o motorista voltou ao seu Juvenal que alguém, ou melhor , que o senhor Juvenal assinasse a famigerada fatura. Ouvi surpreso quando o seu Juvenal falou que não assinaria a fatura por não saber ler e nem escrever. A princípio o motorista incrédulo ainda pensou tratar-se de uma brincadeira. Retrucou: não é possível que o senhor um homem tão rico, sendo conhecido até no sul do país como um grande comerciante, com tantos prêmios recebidos pelas associações comerciais, seja um analfabeto. Então seu Juvenal com muita paciência, iniciou um relato ao motorista do caminhão ou carreta,como conseguira tamanha fortuna sendo analfabeto de pai e mãe e órfão também.
Começou seu relato assim: quando criança perdera os pais, no interior do nordeste,sendo rejeitado pelos demais parentes porque era uma boca a mais a consumiras folhas da macambira que já rareava pelo sertão nordestino naquela época. Andou léguas e léguas com sede, fome, se sentindo um felizardo quando encontrava um ratinho raquítico para lhe saciar a fome e esquentar o bucho.Vagou muitos dias até chegar à capital. Tudo ao seu redor era grandiosidade. Parou numa pracinha que tinha um chafariz e ali banhou-se,catou alguns pedaços de pão seco, sem bromato, num depósito de lixo e ali adormeceu. Acordou com um homem bem vestido e que usava um cinto preto muito largo no meio da cintura, uma pistola pendurada no referido cinto, um chapéu muito bonito, bigode cheio, um pouco carrancudo mais aparentava bondade; ia me esquecendo, a cor da roupa era amarelada. Me fez várias perguntas e depois mostrou-me uma casa muito grande e alta com uma cruz pregada no alto da cumieira e disse-me que ale era uma igreja, a casa de Deus; aí lembrei que muitas e muitas vezes tinha ouvido minha mãe dizer: ai meu Deus. E meu pai dizia deixa o Homem em paz que ele não olha para nós, só olha para os ricos; então o homem da roupa amarela me disse: vá até e procure o padre que ele vai lhe ajudar. Fui até lá, nunca tinha visto um padre, e quando este apareceu à minha frente trajando um vestido todo preto que cobria até as canelas, pensei , é biba, é doente esse menino.O padre me acolheu, aprendi que o homem não estava de vestido e sim de batina e que também não era aquilo que pensei.Fui limpo, ganhei roupa limpa, uma caminha debaixo da cama do sacristão que se chamava Zovão, até hoje não sei porque o apelido! Só não estava tão bem acomodado porque Zovão altas horas da noite além de roncar feito um trator velho, soltava uns estrondos vindo de sua barriga acompanhados de um fedor que se um urubu passasse por ali no momento era capaz de dizer: vige! Eu ajudava na limpeza da igreja, vararia, lavava a batina do padre, ajudava o sacristão cujo nome vocês já sabem, lá na cozinha, jogava as coisas que encontrava no pinico do padre, pela janela de trás da sacristia, e levava recados. Às vezes o padre me deixava de vigia na porta de uma beata e se o marido dela aparecesse eu sopraria um apito (não sei até hoje que tipo de liturgia era aquela) e ajudava também na hora da celebração da missa. Eu ficava com duas cuias de ferro, uma sobre a outra em forma de tampa, o carvão interno era aceso e se colocava incenso dentro da engenhoca que era suspensa por três correntes. Disseram-me que aquele aparato chamava-se turíbulo. Quando o padre tocava aquele sininho eu balançava o turíbulo, era o combinado. E a coisa ia muito bem até o dia em que o sacristão tomou um porre com o vinho do padre rezar a missa e não se levantava nem a pau do seu beliche. A missa já estava pra começar quando o padre me chamou e disse: Juva (quando ele falava assim eu já ficava com a pulga atarás da orelha), vais me acompanhar na missa substituindo ao Sacristão. Pega o missal e me acompanha, quando eu olhar para você piscar o olho, você começa a ler o missal na parte que está marcada com uma fitinha vermelha sagrada. Aí eu falei, seu padre, não vai ser possível eu lhe ajudar porque eu não sei nem ler e nem escrever. Nesse dia o padre se desdobrou na hora da homilia; foi padre e foi sacristão ao mesmo tempo. Acho que não foi a melhor missa que ela havia rezado.Após a missa o padre ainda com jeito de quem comeu e não gostou me chamou e deu as minhas contas. Como nunca havia recebido salário, recebi de ajustes de conta um vai com Deus que o padre me endereçou com cara de quem diz e o diabo que te carregue. Voltei ao meu antigo lar, a praça, debaixo do braço levava uma trouxa de roupa surrada que o sacristão me deu, um par de tamancos rachados e dormi o sono dos justos ali mesmo naquele banco pouco macio. Ao despertar pressenti que alguém me observava. Era um homem já bastante idoso, barba branca e longa, um pouquinho gordo, corado, que a exemplo do policial naquela manhã, me fez várias perguntas também. Depois que lhe relatei toda a minha estória junto ao padre ele olhou para a igreja e resmungou algo parecido como só sendo mesmo o sal da terra.Depois meteu a mão no bolso, tirou algumas moedas e me deu o equivalente hoje a dez reais. Ele me disse: aqui no final desta avenida tem uma Central de Abastecimento. Vá até lá e compre esse dinheiro de frutas e saia vendendo pelas ruas da cidade, amanhã eu volto. Assim o fiz e ao final do dia tinha apurado trinta reais. No outro dia, ao me levantar do meu abençoado banco em que passara a noite, dei de cara com o bondoso senhor que recebeu os seus dez reais de volta e disse para eu continuar a agir da maneira a que ele havia me orientado. Não mais me procurou e nunca mais o vi a não ser em meus sonhos Fiz o que ele me ensinou e continuo até hoje seguindo sua recomendação e de dez em dez, vinte em vinte, mudando de um investimento para outro, cheguei a onde hoje estou e nunca me preocupei em aprender a ler ou a escrever., mais mesmo assim continuo aumentando e aumentando cada vez mais meu patrimônio. Acredito que naquele dia que o padre perguntou se eu sabia ler, se o soubesse, creio que hoje eu não estaria rico, seria no máximo um sacristão e quem sabe por ter sido amigo do zovão me chamasse de zovinho.
Ao final do relato de Teobaldo sobre o que escutara da própria boca de seu Juvenal nos despedimos e cada qual foi para sua casa pensando se vale a pena continuar estudando, ser bacharel, ser mestre, doutor ou não seria abandonar os estudos e começar a vender frutas e verduras por aí.
E você, o que acha ?

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