23 fevereiro, 2008

Cabo Jeremias II



Fazia algum tempo, alguns meses até, que não conversava com meu estimado Cabo Jeremias, brioso militar da Marinha do Brasil que sempre nos brinda com uma de suas narrativas que muito prende a atenção de todos e que sempre deixa no ar aquela pergunta que não quer calar: será?
Narrei ao brilhante militar aposentado uma estorinha que me contaram ainda na minha infância e que procuro reproduzira a seguir: "Um fazendeiro muito rico, sendo viúvo, mandou seu único filho estudar na capital. O jovem muito esforçado, às vezes enviava uma cartinha ao pai solicitando ajuda financeira. Por praticidade repetia sempre
o mesmo texto que era: papai, aqui tudo bem, mande-me dinheiro para as despesas. A vovozinha do rapaz levava o bilhete ao genro e lia o que ali estava escrito com um tom agradável, com carinho. O pai sensibilizado atendia ao pedido e comentava orgulhoso que a cada dia o filho ficava mais amável com ele. O capataz da fazenda nutria pelo jovem uma verdadeira inveja doentia. Certo dia a vovozinha estando ausente, quem leu a carta dirigida ao pai, que não sabia ler, foi o capataz, que de maneira ríspida e proposital a leu num tom bastante autoritário. O velho fazendeiro ficou irado com o tom da narrativa e achou que o filho fora prepotente e nenhum dinheiro lhe enviou. Passado alguns meses o rapaz enviou o mesmo texto de sempre. Dessa feita vovó estava na fazenda e levando a carta ao fazendeiro, leu-a com a entonação e o carinho de sempre e o fazendeiro não só se prontificou em mandar a quantia pedida e fez ainda o seguinte comentário: ta vendo, foi só engrossar que ele baixou a crista e voltou a me paparicar." Comentava o fato com o meu amigo Cabo Jeremias, aliás, sinto-me gratificado com essa amizade, o fato de que uma frase pode alcançar significado diferente devido a sua sonorização; depende do locutor e do interlocutor ao mesmo tempo. Jeremias, já estamos mais íntimos, achou interessante resmungando apenas: é a fonética meu caro.Dependendo da entonação e de quem a lê pode causar efeito diverso.Ao final do meu relato, como ,era de se esperar, Cabo Jeremias disse-me que o fato lhe lembrara uma outra estória bem parecida com a que contei e começou assim: quando ainda estava em serviço ativo presenciou um fato interessante mas primeiro iria fazer um prólogo para que eu, sendo civil, entendesse melhor a narrativa. Disse-me que na Marinha existe um excelente serviço de assistência médica para atender ao pessoal da ativa, como também aos inativos e seus dependentes e que esse serviço é conhecido pela sigla FUSMA (Fundo de Saúde da Marinha). Quando o ilustre cabo Jeremias se alistara na Marinha o FUSMA , com a mesma finalidade, tinha uma outra denominação que era AMSA (Assistência Médica para o Serviço da Armada), porém, nem todos os dependentes dos militares eram assistidos por esse serviço. Somente os que contribuíam primeiro, em forma de carência, ,por dois anos consecutivos. A partir daí a coisa estava legalizada. Nessa época existia na Marinha uma regra muito oportuna que era uma promoção concedida ao praça de graduação suboficial, que ao ser transferido para a reserva, tinha o direito de requerer uma promoção a oficial e retornava ao serviço ativo com a patente de oficial. Naquela época, nem todos os suboficiais eram letrados como os de hoje mas eram homens de um profundo conhecimento profissional invejável. Nunca me disseram o porquê , porém me disseram que esses oficiais recebiam o apelido carinhoso de TERERÉ.
Certa noite, estando de Oficial de Serviço um Tereré, no hospital naval que atendia a mulheres em trabalho de parto, a maternidade, adentrou um marinheiro todo malimolente, cheio de gingado, usando termos como meu irmão, chefia balacobaco, acompanhado de uma mulher de baixa estatura, com a barriga a denunciar aproximar-se o fim da gestação, chorosa e com hematomas nos braços e no rosto. O experiente Tereré olhou aquele quadro de longe, a postura de malandro do marujo, e percebeu logo que aquilo só podia dar em um sete um e que aquela praça devia ser um menino de ouro, se derretesse não dava um anel. O Quincas (apelido de marujo à época) apresentou-se com a saudação militar de praxe que é a continência, por sinal, muito mal feita, e foi logo falando: chefia to aqui perante vossa excelência solicitando internação aqui pra minha nega que ta a ponto de despejar a barrigada no meio da rua. O Tereré, diante do quadro, a mulher chorando, o menino quase botando a cabeça de fora, piedoso que era, perguntou ao marujo: diga-me jovem marinheiro, você é sócio da AMSA. E o marujo quase não o deixou concluir a frase e respondeu: sou sim senhor. O veterano oficial olhou de novo para aquele marujo e sua intuição lhe dizia, cuidado isso é chave de cadeia, você está lidando com sangue ruim. E por precaução repetiu várias vezes a pergunta: marujo, você é sócio da AMSA e ele sem pestanejar respondia sou sim senhor. Foi providenciada a internação da mulher, o parto fora prematuro, houve complicações de tudo que foi jeito. A mulher era uma tremenda baixaria, reclamava de tudo e com todos. Esnobava dizendo que aquilo não era hospital e sim um chiqueiro e outras arbitrariedades mais. Papelada vai, papelada vem, descobriu-se que a mulher não era esposa nem dependente do marujo e sim uma prostituta não sindicalizada que passara uma noite de amor com o dito cujo e pior o marujo não era sócio da AMSA . Assim sendo as despesas recairia sobre quem a autorizou a internação que era nada mais nada menos o nosso experiente oficial Tereré. O Tenente ficou irado e providenciou a vinda do marujo imediatamente ao hospital e esse já chegou na companhia de uma escolta de Fuzileiros Navais. O Tenente subia nas tamancas de tanta raiva, não por ter que indenizar o hospital, mais porque depois de quarenta anos de serviço fora ludibriado
Por um marujinho qualquer. O marinheiro, impecavelmente fardado, parecia um sacristão de tanta humildade que aparentava. Estavam reunidos no salão, o Diretor do hospital, o vice-diretor, o intendente com a planilha de gastos à mão, outro tereré que de vez em quando dava um sorriso de gozação, o tereré vítima, a mulher com a criança no colo chorando e peidando a toda hora , a escolta de fuzileiros, o capelão, a maioria surumbácta. O Tenente, com ares raivosos, na frente de todos os presentes dirigiu-se ao marujo e com a voz irada, muito pê da vida, perguntou: marujo, naquela noite que você apareceu aqui com a mulher quase parindo, você lembra que eu por várias e várias vezes perguntei a você: marujo você é sócio da AMSA e você me respondia, Sou sim senhor. O marujo falou: meu idolatrado chefe,está havendo um mal entendido nisso tudo. Naquela noite em que procurei ajudar essa pobre senhora que padecia de dores aí no portão do hospital sem que nenhuma assistência lhe fosse prestada por tratar-se de pessoa sem uma ligação direta com o meio naval, e intuindo que poderia encontrar uma pessoa do seu gabarito que pudesse se condoer da situação dessa pobre indigente, dirigi-me a vossa senhoria e pedia ajuda. Naquele momento tudo ficou confuso e a emoção deve ter invadido o coração de todos e realmente o senhor me fez várias perguntas, não nego e respondi a todas. Só que naquela confusão toda eu entendia que o senhor me perguntava: marujo você ta na onça e eu lhe respondia tô
sim senhor. E o resultado é que o marujo foi solto e o tereré infelizmente arcou com todo o prejuízo. Aí olhei para Cabo Jeremias e notei um leve sarcasmo no jeito em que me olhava. E sem me dar tempo de tirar qualquer conclusão sobre essa fantástica estória começou a me contar outra iniciando-a assim: "na Marinha existem dois tipos de militares. Os marinheiros propriamente ditos e os fuzileiros navais. A princípio os marinheiros guarnecem os navios e os fuzileiros, tropa de terra, guarnecem os quartéis. Isso dito de forma simples e genérica.Os fuzileiros são chamados de fuzileiros navais são militares destinados a embarque e desembarque de tropas entre outras atribuições. É uma tropa bem preparada e muito conceituada no âmbito naval. Certa vez, continua Cabo Jeremias com seu relato, faleceu um dos mais abnegados Almirante do Corpo de Fuzileiros Navais – faleceu de morte natural – e foram providenciados todos os preparativos a fim de que seu funeral o homenageasse post-morten, à altura do valoroso oficial que fora em vida. Por ocasião do enterro, presente muitas autoridades, convidados de outras Forças Armadas, o Clero, os políticos, os empresários; enfim toda a nata da sociedade fazia-se representar. Na última hora surgiu um imprevisto; o corneteiro que iria executar o toque de silêncio, ponto alto do funerário, havia sofrido uma disposição estomacal e fora levado às pressas a uma enfermaria móvel. O oficial responsável pelo cerimonial imediatamente escalou outro fuzileiro, um jovem militar de boa aparência, alto, forte, porte e atitudes marcial, para substituir ao que passara mal. Era chegada a hora do sepultamento. O Capelão Naval dava as ultimas recomendações ao "de cujos" para quando ele entrasse no céu. A viúva , era do segundo casamento, era bastante jovem e todo mundo queria abraçá-la e apresentar-lhes suas condolências. Tinha um cabo velho responsável pela faxina do cemitério, que só pensava besteira, cochichando ao ouvido de um soldado dizia: agora que o homem bateu a caçoleta ta todo mundo querendo tirar uma casquinha na viúva.
A guarda já estava formada, a banda de música executava o tango de Carlos Gardel que era a preferência de sua Exa. Quando em vida terrena. Houve uma salva de bem uns quarenta tiros. E o oficial do cerimonial determinou em bom tom: Corneteiro toque Silêncio. O corneteiro fez uma malabarismo com a corneta digno de um malabarista do circo de Soleil, levou-a aos lábios carnudos e sensuais e de repente, ao invés de soprar a corneta, começou a chorar. O oficial , pensou: Deus, o fuzileiro é biba ! E repetiu a ordem com mais ênfase: Corneteiro toque de Silêncio. E tantas vezes o oficial ordenasse o toque de silêncio, tantas vezes o fuzileiro fazia a firula com a corneta e ao direcioná-la aos lábios vinha o copioso choro. A viúva vendo o emocional do militar, condoeu-se daquela situação e pediu para o responsável pelo cerimonial que dispensasse o toque de silêncio e o pobre homem fosse liberto daquele sacrifício, pois ele deveria ser um dos grandes admiradores de seu ex marido. O toque foi omitido e o cerimonial continuou agora com muito mais condolências e abraços efusivos na viuvinha.
O comandante do corneteiro, presente à cerimônia, presenciou tudo e não ficou nada satisfeito e depois que o Almirante foi encaminhado ao céu, mandou chamar o fuzileiro chorão para as explicações de praxe. Perguntou se o falecido Almirante havia prometido alguma coisa, em vida, ao corneteiro e este respondeu que não. Perguntou se servira muito tempo com o de cujos e a resposta foi não senhor. Perguntou qual a admiração maior que ele sentira pelo seu ex chefe, respondeu que nenhuma. Perguntou de onde conhecera o dito e mais uma vez respondeu que nunca o vira antes daquele dia, no caixão. Aí o Comandante já meio estressado perguntou por que ele chorava tanto por ocasião do cerimonial e o corneteiro respondeu humildemente: é que ainda não aprendi a tocar silêncio. É claro que não posso duvidar de um militar de tamanha patente, mais às vezes, confesso, fico um pouco balanceado com relação à lisura do ilustre amigo militar. Nos despedimos cordialmente e mais uma vez cabo Jeremias prometeu que em breve me contaria mais uma de suas estórias vividas ou observadas durante o pequeno interregno de quarenta anos que passara na Marinha. Vamos ficar no aguardo.

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